L'ennemi

Voilà que j'ai touché l'automne des idées
Baudelaire

mercredi 23 juin 2010

Pictural

        Seus corpos, agora inertes, repousavam sobre a cama. Ela contemplava a imagem formada dentro dos olhos dele. Ele buscava o significado da vida na profundidade do olhar dela. O silêncio que os separava, naquele instante, era só mais um elemento no conjunto de detalhes que enalteciam aquele quadro. Para ela, o quadro pintado era sempre o mesmo: as cores que o compunham desarticulavam o espaço e o tempo; toda lógica era quebrada; nenhuma moldura limitava a tela; o amor completava o caráter semiótico da obra. Para ele, o quadro pintado era sempre enigmático: as cores que o compunham desarticulavam o espaço e o tempo; toda lógica era quebrada; nenhuma moldura deveria limitar a tela; o amor completava o caráter semiótico da obra. Ela tinha seus pontos de vista. Ele via por ângulos diferentes. Sob ideologias diferentes viam a mesma vida, viviam o mesmo amor, amavam a mesma arte, articulavam a mesma dor.
        Seus corpos, agora vivos, queimavam sobre a cama. Ela buscava a si mesma no reflexo dos olhos dele. Ele contemplava a si mesmo na juventude dos olhos dela. A vida que os separava, naquele instante, era só mais uma razão no conjunto de sentimentos que exaltavam aquela pintura. Para ela, a vida pintada era sempre a mesma: os cabelos longos e retos compunham uma personalidade sóbria; os cabelos loiros em camadas gritavam um duplo em desespero; os cabelos castanhos e curtos descobriam a multiplicidade do ser; o cabelo revelava o caráter ideológico da obra. Para ele, a vida pintada era sempre exótica: os cabelos castanhos e curtos compunham uma personalidade sóbria; os cabelos em estilo moicano gritavam um duplo em desespero; o calvo descobria a multiplicidade do ser; o cabelo revelava o caráter ideológico da obra. Ela tinha personalidade. Ele tinha institucionalidades. Sob experiências diferentes viam a mesma vida, viviam o mesmo amor, amavam a mesma arte, articulavam a mesma dor.

dimanche 20 juin 2010

Mestre (I)Mortal

Na aurora. No crepúsculo. Na madrugada. Líquido e preto e quente e sempre Sarama(r)go. De capa dura azul mesclado, de letras grandes azul dourado. Azul sem nuvens, céu ensolarado. Azul chuvoso, céu nublado. De página amarela sou Pilatos, no mar da Galileia marias e fardos. No prefácio. No conflito. No epílogo. Sólido e encardido e frio e sempre Sarama(r)go. De fôlego sem pausa pontuada, de dor atroz vermelho sangue. Vermelho sem cortes, ego renegado. Vermelho viscoso, Ele abençoado. De fim gotejante sou vital, na margem da literatura dedicatórias e embargos.