L'ennemi

Voilà que j'ai touché l'automne des idées
Baudelaire

mercredi 19 janvier 2011

Passatempo

Meus olhos pesavam. Pisquei uma, duas, três vezes. Tudo ainda estava embaçado. Olhei ao redor. A visão foi ficando mais nítida. A claridade era insuportável. Havia esquecido de fechar a cortina. Os raios solares espalhavam-se solenemente pelo quarto. Tentei me levantar. Minha cabeça doía demais. Minha boca desfrutava de um sabor amargo. Sentia-me envenenado. Voltei a fechar os olhos. Alguma coisa se mexeu na cama. Ah, não! Minhas pálpebras recusavam-se a me obedecer. Quando o fizeram, consegui distinguir algumas roupas femininas espalhadas pelo chão. Virei para o lado. Ela era linda, mesmo depois de ter amanhecido. Exalava um cheiro bom. Era dona de um rosto suave e de contornos que se destacavam no contraste com uma cintura fina. Não lembrava como a conheci. Nem como chegamos até meu apartamento. Nem qual era o seu nome. Por que eu sempre acordo primeiro que elas? Talvez para ficar contemplando-lhes a beleza natural e tentando adivinhar-lhes o nome. Quem será você? Na verdade, pouco importa. Deve chamar-se Amanda, assim como todas as outras. Acho melhor voltar a dormir. Quem sabe, quando eu me acordar novamente eu possa aproveitar-me de minha privacidade. Aconcheguei-me na cama. Ao lado da cabeceira, um criado-mudo vazio. Ainda sinto a falta dela. Nenhuma ausência me causou tanta dor. Posso sentir, agora, a plenitude da solidão. Às vezes esqueço que ela não está mais aqui. Desejo acordar e poder abraçá-la. Sonho com ela sorrindo serenamente, murmurando o meu nome. Sonho...
Uma música. De onde vem essa música? O celular tocava insistentemente. Alô. Alô! Quem fala? Não, não tem ninguém aqui com esse nome. Tudo bem. Tchau. A cama estaria vazia, se meu corpo inerte não estivesse ali . Eu posso sentir o tempo passando com seu arrastar de horas, com seu cumprir de dias. O relógio marca a início de mais uma noite. Como um vampiro, necessito de sangue fresco. Cabelos pretos, olhos claros, personalidade impactante, sensual e feminina, sem beirar o vulgar: uma vulgaridade profissional. Ar de Lolita para acreditar-me apaixonado e terminar traído, seja por mim mesmo, seja por minha paixão. Na aurora não a encontro. Parece maldição. Durmo com ela todas as noites e pela manhã todas elas se vão. Nenhuma ausência me causou tanta dor. Pedi que ela fosse embora. A liberdade me aprisionou. Voltei no tempo um dia desses. Voltei para o hoje. Voltei para o amanhã. Minha teimosa boca ainda grita por ela no silêncio. Ainda sonho com ela sorrindo serenamente, murmurando o meu nome. Sonho... Outro dia amanhece, mais um dia que acabou.

mercredi 5 janvier 2011

Se me ardo

Era uma noite de céu estrelado. O verão num tinha chegado, mas o calor já assolava os dias de primavera. As rachaduras do chão aparentavam mais e mais os abismos que, com profundidade, dividiam as terras. Um pouco assim me sinto agora. Consumida pelo fogo que me fere. Enfraquecida pela fome que me devora. Atormentada pelo espinho que me envenena.

Era uma noite de céu estrelado. E há muito a chuva não aliviava a sensação de desespero em minha cara. O vento que espalhava o piso de barro batido de casa não trazia nenhum sossego. Nenhum prenúncio de precipitação. Um pouco assim vou me sentir depois. Envenenada pelo espinho que me atormenta. Devorada pela fome que me enfraquece. Ferida pelo fogo que me consome.

Mais uma noite de céu estrelado... Rangendo rede é que a gente descansa, fumando palha é que a gente obedece, sertanejeando é que a gente se reconhece. E a chuva no sertão?, acende mais um cigarro e se sente comigo na rede que mais dia menos dia ela sacia quem tem sede.