Silêncio... Eu estava tão alegre naquele dia. Sentia uma leveza incomum e, talvez por isso, indescritível. Sentia mesmo que podia flutuar. Mas não o fiz. A sensação de conforto perpassava todo o meu corpo. Eu estava tão integrada ao lugar que não sentia meus membros. Só queria permanecer ali... Os olhos fechados. As pálpebras pesavam tanto e o sono entorpecia todo o meu ser.
Sussurros... Eu tentava me lembrar que lugar era aquele. Lugar desconhecido e tão aconchegante. Tinha ido ao escritório para pegar uns relatórios que precisavam ser analisados. Era sábado. Todos deviam estar com suas famílias, talvez numa casa de praia, afinal, o dia estava tão bonito; ou, quem sabe, numa casa nas montanhas: chocolate quente para os filhos, café para os concentrados, chá para os relaxados. Bem, eu só precisava pegar os relatórios e voltar para casa. Ainda era manhã e Mateus devia estar dormindo... Podíamos viajar. Quase nunca ficávamos juntos. Coloquei os relatórios na pasta, segui para o estacionamento. Só havia um carro: o meu. Entrei, abri as janelas para sentir o vento, liguei o CD player e, ao som de Chopin, dirigi tranquilamente pela cidade. Estava perto de casa quando parei no sinal vermelho. Verde: segui.
Dor... Minha cabeça pesava, minha boca amargava. Sentia uma dor aguda. Os espasmos quebraram todo o meu raciocínio e me deslocaram de mim mesma. Quando cheguei a casa, Mateus tomava o café da manhã que Maria havia preparado para ele. Foi incrivelmente saboroso vê-lo feliz com a proposta da viagem. Só precisamos de duas horas para organizar tudo. No banco de trás do carro, ele planejava o final de semana elencando todas as suas vontades. Mateus parecia com o pai: olhos cor de tabaco intensamente vivos, procurava em tudo a essência da vida, era simples e forte e lindo. Era tão difícil vê-lo e não lembrar, vê-lo e não sentir essa aguda dor no peito. Mais um sinal. Verde: segui.
– Acorde! Vamos, garota, acorde! – uma voz masculina gritava, insistia. Eu sentia tanta dor. Todo o meu corpo reagia. Abri os olhos. Estava tão claro. O sol incomodava demais. Não dava para entender o que toda aquela gente falava. Olhei ao redor, tentando digerir a cena. Carros de polícia, ambulâncias... Uma multidão nos cercava. E deitado no chão, frágil como eu nunca havia visto, pequenino e imóvel, estava o meu filho sobre uma poça de sangue.
– Tia, falta muito para a gente chegar? – havia ansiedade em sua voz.
– Não, meu amor, só falta um pouquinho. Por quê? Você quer alguma coisa?
Eu o olhava pelo espelho do retrovisor. Dava para perceber que ele queria dizer algo. Suas feições haviam mudado, entristeceram-se. Então compreendi o que ele tentava dizer...
– Você quer ver o papai e a mamãe antes de irmos à praia?
– Quero sim. Você se importa?
– Claro que não. Também sinto a falta deles.
– E a do Miguel também, né?
– É... Sinto muito a falta do Miguel.
Não era só o amor que me unia a Mateus. A dor da perda era um elo de identificação muda e natural entre nós. Mateus era filho da minha única irmã com um homem incrível. Ela havia morrido no parto. Sempre acreditei que o pai de Mateus também morreu naquele fatídico dia. Depois da morte da esposa, Pedro começou a definhar. O alcoolismo acabou com a sua vida... E com a de meu filho. Num mesmo acidente perdemos quase toda nossa família. Hoje, Mateus e eu tentamos superar um dia após o outro. E quando achamos que não temos mais nada, ainda temos o silêncio para partilhar. Sempre teremos um ao outro.
– Pronto para ir à praia?
– É, estou.
Todos foram enterrados no mesmo cemitério. Túmulos lado a lado para experimentarmos todo o conflito a ser sentido para o resto de nossas vidas.
– Tia, podemos tomar sorvete antes de continuarmos a viagem?
– Hum... Boa ideia! Está quente mesmo, um sorvete vai ser bom.
Verde: seguimos, mesmo com todos os sinais.