L'ennemi

Voilà que j'ai touché l'automne des idées
Baudelaire

mardi 15 novembre 2011

Entre prosas e versos

Não me venhas
Com meios versos.
Quero um poema inteiro
Para ler num dia
Triste de Inverno.

Quanta poesia,
Dúbia, não li?
Quantos contos,
Ridículos, não guardei?

Ser poeta,
Toda prosa:
Emaranhados diversos.
Não sonhei?

samedi 15 octobre 2011

Le goût du vin

Quebro a taça
Desperdiço o vinho
Depois de uma garrafa,
Qualquer moça
Vai se abrindo.

Solto o verbo
Deslizo a língua
Depois de uma cantada,
Qualquer moça
Vem sorrindo.

Dói a cabeça
Remói a consciência
Depois de uma noitada,
Qualquer moça
Sai de fininho. 

lundi 26 septembre 2011

Memórias de uma guria viajante VII: Pesadelos

          O lugar era arejado e confortável. As janelas eram grandes, tomavam toda a parede leste da sala, cobertas por persianas que, agora, estavam abertas. Podia avistar os prédios altos que circundavam aquele próprio. Mais além, além dos prédios, o céu estava límpido. Não aparentava ter chovido como tinha chovido na noite anterior.
          Enquanto meus olhos investigavam detalhes da sala, ela me observava pacientemente. Quadros, mesa, poltrona, divã, tapete... De forma geral, o ambiente possuía uma neutralidade estranha. Um ou outro objeto de cor forte e sóbria dava vida ao lugar. Sentei.
- Então, o que te trouxe aqui?
- Bem... Não consigo dormir.
- Há quanto tempo não dorme?
- Não sei. Acho que perdi a conta. Na verdade, não me lembro de muita coisa hoje.
- Você sempre teve crises de insônia?
- Na infância...  Mas os motivos eram outros.
- Motivos, você disse. Você os conhece?
- Mais ou menos. Não sei por que não dormia quando era criança.
- E, agora, você sabe?
- Sei.
          Silêncio. Minhas mãos tremiam, meus olhos estavam cheios de lágrimas. Ela, gentilmente, arrastou uma caixa de lenços de papel pela mesa de centro de madeira que separava sua cadeira da minha, oferecendo-me, de certa forma, consolo.
- Tenho medo, muito medo.
- De quê?
- De pesadelos...
- Você costuma ter muitos pesadelos?
- Às vezes. Eles vêm e vão.
- São recorrentes?
- Alguns...
- Você quer me contar o que acontece nos seus pesadelos?
- Não sei. As palavras têm poder, sabe. Se eu contar, se eu lembrar...
          Silêncio. Ela se ajeitou na poltrona, aproximando-se mais de mim ao inclinar-se para frente. Parecia curiosa.
- É bobagem, eu sei. São só sonhos, eu sei. Compreendo perfeitamente que não são reais. Mas, quando tenho pesadelos, o meu medo ultrapassa a dimensão da racionalidade, sabe? Apesar de entender que os sonhos não cabem na realidade, o medo que sinto é real.
- Desde quando você tem esses pesadelos?
- Desde os onze anos. Os iniciais eram mais recorrentes... Envolviam questões religiosas, eu diria que até questões espirituais.
- E os de hoje?
- Ainda tenho esses pesadelos que tinha na infância. Mas, agora, eles são mais violentos, mais absurdos...
- Absurdos?!
- São mais bobos, menos reais, mas muito violentos. E tudo me dá medo. Meu medo me leva a sonhar. 
- Qual o seu maior medo?
- Difícil responder com certeza... 
          Tique-taque. Tique-taque. Tique-taque. Minhas mãos apertavam-se com força, inquietas. Ela as olhava. Me ofereceu água. Aceitei. Com o copo na mão, o nervosismo foi se dissipando. Continuei:
- Acho que de ficar só.
- O que tem de errado em ficar sozinha?
- Não quero passar o resto da vida sozinha. Às vezes, tenho visões... Me vejo sentada, escrevendo um livro. De vez em quando, faço um carinho em meu gato, meu único companheiro.
- Você imagina isso ou sonha?
- Acho que sonho de olhos abertos.
- E o que você pretende vindo aqui? Pretende parar de ter pesadelos?
- Quero parar de ter medo! Quero entender o que se passa comigo. Por que tenho medo agora? Por que dormir se tornou algo tão torturante?
- Você não consegue ou não quer dormir?
- Talvez não consiga porque não quero. Já pensei nisso. Não quero por que tenho medo?
- Medo de quê?
- De ser maculada com violência, de perder o espaço de racionalidade que delimitei, de ter mais medo quando acordar.
          Tique-taque. Tique-taque. Tique-taque. Ela parecia inquieta. Olhou três vezes para o relógio. Parecia buscar cuidadosamente as palavras.
- Vá para casa. Durma. Tenha um pesadelo horrível. Não acorde, deixe que ele termine. Enfrente seu medo. Lembre de tudo. Anote o que lembrar... Traga suas anotações na próxima semana.
- Posso dormir com alguém?
- Durma sozinha. E volte para me contar como foi sua experiência.
- Tudo bem. Até semana que vem.
          Ela também se despediu, levantando-se e abrindo a porta para mim. Assim que cheguei em casa, iniciei meu ritual de relaxamento para dormir. Banho quente, chocolate quente, um bom livro... Finalmente o sono chegou. Dormi como uma pedra. O pesadelo nunca mais voltou. Sonhei com o céu, um anjo me puxou. Não pude voltar para terapia... O sonho nunca mais acabou.

samedi 20 août 2011

Quem pintou minhas rosas?

- Mamãe, posso ficar com o gatinho? - perguntou Cecília enquanto apertava o coelhinho de pelúcia contra o rosto. Eu não precisava responder nem emitir um único som... Ela já corria pela casa puxando seu mais novo bichano pela coleira.
- Meu Deus, o coelhinho vai ficar todo sujo! Vai dar um trabalho para lavar...
A alegria de Cecília era contagiante. Expressões suaves haviam sido pintadas por Deus naquele rosto pequenino, cabelos pretos e lisinhos e sorriso luminoso. Às vezes acho que Cecília já nasceu voando, ilogicamente, com as asas da imaginação. Às vezes, chego a questionar minhas lembranças... Não me recordo de Cecília engatinhando, só a vejo correndo pela casa quando volto no tempo. E ela é uma menininha comumente incomum. Nunca enxergou, não com os olhos. Nunca conheceu as cores, sempre nomeou-as com nomes de frutas. Doce como amora, Cecília sempre tinha histórias para contar:
- Mamãe, tem uma fadinha no meu quarto, desarrumando minhas bonecas.
- Mamãe, a fadinha não me deixa dormir.
Mas o conto mais curioso aconteceu semana passada. A fadinha danada pintou todas as rosas do jardim. Todas as cores mesclaram roxo, todas flores cheiraram lis. Cecília chegou no quarto pela manhã, fazendo a queixa:
- Mamãe, quem trocou o sabor das rosas? Quem roubou meu pudim?
Três dias de castigo e a danada bateu as asas. Voou para longe, pela estrada e Cecília foi dormir. Logo, logo o bichano volta a comer cenoura e um ursinho começa a latir. 

lundi 8 août 2011

O tempo é relativo:

Chove
Teu veneno ambarado;
Chove
Teu ardor tresloucado.
Cubro 
O céu da tua boca.
Língua
Deslizas minha espinha.

Choro
Tuas lágrimas de crocodilo;
Choro
Teu corpo escondido.
Luto
O turvo dos meus olhos.
Retina
Debochas minha sina.

mardi 26 juillet 2011

Acalanto - Para C. G.

Seu Chico,
o senhor me desculpe
não sei cantarolar nem tocar
tampouco, Seu Chico,
compor canções de ninar.

Eu só gostaria,
Seu Chico,
de poder amamentar.

Seu Chico,
o senhor me perdoe
não posso parar nem continuar
tampouco, Seu Chico,
compor auroras de serenar.

Eu só gostaria,
Seu Chico,
de poder acalentar.

mercredi 6 juillet 2011

Memórias de uma guria viajnte VI: Infertilidade

-- Obrigada, Dra. Mas o que faço com este amor que trago aqui? -, perguntei batendo no peito - O que faço com a dor que turva meus olhos? O que faço, Dra... - os soluços e as lágrimas interrompiam meu desabafo, então respirei fundo e continuei: -- O que faço, agora, com esta tristeza que consome minha vida, que neutraliza minha felicidade?

No caminho de volta para casa, meus pensamentos voltaram no tempo. Eu era incapaz de evitar que as lágrimas caíssem de meus olhos. Lembrei-me do que as pessoas comumente diziam: "Deus sabe o que faz", "Um dia sua hora vai chegar", "Não fique triste. Tudo pode ser resolvido".  Essas lembranças trouxeram aos meus lábios um sorriso amargo. Não deixei de acreditar em Deus, sabe, mas não consigo compreender seus critérios e suas preferências. Será, meu Deus, que não sou digna de ser mãe?

Um dia, um aluno me perguntou: "Por que você escolheu ser professora?". Eu respondi dizendo que não havia escolhido a profissão, que ser professora é a única profissão para qual tenho vocação. Depois de um tempo tentando engravidar, percebi que ser docente é ter muitos filhos para amar. Dizem que Deus escreve certo por linhas tortas... Continuo tentando rezar para que um dia as linhas se endireitem ou para que, ao menos, minha visão melhore.

lundi 13 juin 2011

Minha poesia

Minha poesia é caixa de vidro:
Guarda o deserto arenoso,
O lagarto metamórfico.
Ora vidro fumê,
Ora chumbo grosso;
Se me concentro,
verde-musgo.

Minha poesia é cidade sitiada:
Isola a doença contagiosa,
A violência pandêmica.
Ora beco sem saída,
Ora estreita avenida;
Se me asfalto,
cinza-morte.

Minha poesia é copo com água:
Afoga a sede desgraçada,
O calor insípido.
Ora meio cheio,
Ora meio vazio;
Se me completo,
marrom-lama.

Minha poesia nem é rasa!
De tão rala,
Não me rasga,
Não me fere.
Adoeço e não tenho febre.
Mata e sufoca e não envenena.
Corro, morro, mas não me sustenta.

dimanche 12 juin 2011

Os nós de nós dois

               A luz era vermelha e enchia o lugar com um cheiro doce e sensual. O quarto parecia ser o mesmo da última lembrança. Deitado onde estava, ele conseguia ter uma visão panorâmica do ambiente que os distanciava agora. Uma mesinha de granito no canto, paredes brancamente avermelhadas pela luz, uma cama grande que podia ser contemplada do teto, um quadro que exaltava a luxúria. As bocas desejosas do encontro que jamais aconteceria, separadas na imagem estática. As mãos seguravam os seios arredondados da mulher que nunca seria olhada nos olhos, consumida de costas para o expectador observar cada detalhe de seu corpo...
               A porta do banheiro se abriu. Ele tentou disfarçar o nevorsismo incoerente. Ela também estava nervosa. Sempre parecia ser a última vez. E essa sensação conferia ao momento uma necessidade única de realizar todos os desejos de seus corpos. Ela se aproximou da cama, enquanto ele se levantava. Ele já estava despido. Ela tentava esconder as curvas expostas pela camisola de tecido transparente. Ele segurou suas mãos e, delicadamente, beijou seus decotes. Beijo por beijo, alcançou a sua boca úmida. Ele a deitou na cama, como um pai que vai ler uma história para a filha. Seus cabelos lisos e castanhos espalhavam-se pelo travesseiro branco. Ela podia olhá-lo nos olhos e confessar seu amor, mas de que serviria a eles? Antes de virá-la de costas, ele sussurrou em seu ouvido o quanto estava particularmente linda naquele momento e despiu-a da camisola com a habilidade de uma brisa fresca. 
               Mesmo naquela posição, ela podia acompanhar cada expressão do corpo dele pelo espelho. Ele estava de olhos fechados, mas seu corpo vislumbrava cada centímetro do dela, esgotando cada suavidade de pele com a ponta da língua. De vez em quando, ele precisava parar para respirar profundamente, como se o ar acabasse antes de chegar aos seus pulmões. Ele beijava cada detalhe do corpo dela, descobrindo todos os mistérios daquela mulher. O corpo dela reagia, como uma deusa adorada por um crente fanático. Quando sentiram que a paixão ia transbordar, encaixaram-se um no outro com a naturalidade de quem se visita regularmente. Alcançaram juntos o ápice daquela loucura. 
               Ela o amava e sempre o amaria. Naquele instante, ele a amou com certeza. Continuaram deitados e abraçados, aguardando o mundo exterior intervir no sonho compartilhado pelos dois. O telefone dele logo tocou, fazendo-a acordar bruscamente. Dessa vez, era ela que se via sozinha na cama. Olhando a sua volta, ela decidiu que merecia mais. Ele pareceu concordar, mas tinha que ir embora de qualquer forma. Apressadamente, ele se vestiu e recolocou a aliança no dedo da mão esquerda, rezando silenciosamente que ela não demorasse no banho. Ela sabia como funcionava, logo, vestiu-se rapidamente. Ele sempre descontraía o clima falando sobre coisas que ambos gostavam de conversar. Ela ria e ele a abraçava. Estranhamente, estariam ligados por um longo tempo. Mas nunca seriam mais do que eram  naquela história. Era como viver num mundo paralelo conhecido apenas por eles. Quando o tempo acaba, não há mais o que fazer, além de ir para casa e esperar que ele queira desfrutá-la novamente, além de esperar que as páginas do livro acabem. Ela não conseguia chegar ao fim da leitura...

vendredi 3 juin 2011

Memórias de uma guria viajante V: Angústia de quem vive

Era humanamente desumano. E Ele parecia zombar de cada gota da angústia que, dolorosamente, inundava o copo daquela famíla. Não se podia dizer que era bem uma tempestade... Nem que era simplesmente uma longa estiagem. Até o dia estava ensolarado. Entretanto, alguns a chamavam Morte. Talvez o fim combine mais com a noite para que o dia traga alguma esperança, ou qualquer outro motivo para continuar vivendo, um desses motivos que encontramos para não morrer diariamente e aos poucos. Quem sabe, fosse apenas uma ironia do Destino?  Mas a sátira continuava...
Eu via o verde céu. Estranho foi vê-lo arroxear-se com as horas infindáveis de um dia que teve quarenta e oito horas e duas noites interpostas. J. C. parecia distante no meio dos outros e intimamente próximo ao meu lado. Dessa vez, meus olhos não o procuravam. Meus medos e orações seguiam na direção dela. Tão firme, tão forte, tão prestativa... Ofereceu seus ombros a todos e esqueceu-se de sua própria dor. Não, guardou-a para si para chorar a perda no silêncio e no calor de seu quarto, para lamentar a morte sufocando os próprios gritos de desespero. Ela havia encarado a Morte mais uma vez e sobrevivido a ela novamente. A Morte era negra, mas não como a noite que possui estrelas, mas como o fim que não possui voltas. Comercializava almas como um ladrão. O funeral foi longo. O enterro foi emocionante. A dor será eterna. O homem não pode ser substituído. E não seria.

dimanche 29 mai 2011

Redoma de Vidro

          Depois de algum tempo, abri a porta e entrei na sala. O lugar estava vazio, exceto pela minha presença. Escolhi o melhor ângulo. Sentei. Olhei para frente e lá pude vê-lo. Eu o olhava com admiração enquanto ele conduzia a conversa. A paixão com que falava me apaixonava também. Meus olhos estavam fixos nele. Seus olhos sorriam para mim.
          Alguém abriu a porta. Um simples gesto e a lembrança se desfez. Era um sinal? Ninguém entrou, ainda estava sozinha, exceto pelo amor que trazia em meu peito. Agora, tenho a tarefa de prosseguir com a conversa iniciada do lado de lá do Atlântico. No poema, Amor e Liberdade.
          Depois de algumas descobertas, tirei a máscara e me olhei no espelho. O lugar estava vazio, exceto pela presença dele. Não havia nenhum reflexo, não havia nenhum brilho, não havia nenhuma voz. Não havia sequer um fim. Havia um único corpo: casca inútil, casco oco. Um único corpo!
          Ninguém entrou, ainda estava sozinha, exceto pela dor que trazia em meu peito. Agora, a tarefa de prosseguir com a vida iniciada do lado de lá da Cidade de Vidro. No poema, Solidão e Fraternidade... Era um sinal?

dimanche 22 mai 2011

Alma de pescador

O barulho do vento soprando,
O silêncio do mar resistindo
À imagem da aurora, clareando
A vista de alguém que segue rindo...

O mastro que ao longe despontando
Um barco, um horizonte sumindo
No vaivém da água, tranquilizando
As Almas; um Pescador segue indo...

Altivo como se conhecesse
O próprio destino que é inconstante, 
Incerto, prepotente, distante...

Honrado com se percebesse
Triunfante diante da volta
Que é a vitória da oração que o escolta.

samedi 21 mai 2011

As coisas com o tempo - Homenagem a Fernando Fiúza

Com o tempo tudo vai embora...
Agora, antes ou depois?, quando vê, foi,
Quando vai, não acabou e chora...
Corrobora a distância entre dois.

Com o tempo tudo fica mudo...
Incrusto por silêncio e paciência,
Quando fala, não diz e burla...
Corrobora distância entre dois.

Com o tempo tudo cria asas...
Passa a vida ansiando liberdade,
Quando voa, prende-se, não volta...
Corrobora distância entre nós.

          Com o tempo nem tudo morre...
          Permanece o amor que o eterno constrói.

vendredi 20 mai 2011

Soneto da Ausência

De tudo que considero importante
Diante dos dias vividos por mim
Começo a perceber que num triste fim
Sonho, Amor nada pode ser constante

De tudo, sempre considerei infame,
Certeza única, eterna é a Solidão
Vazia, modelo de angústia do não,
Morte... medo de que nada se derrame

Sinto na alma uma dor, ausência profunda
De amor, de outra presença que me complete
Algo bem mais além do terror que afunda

Será que o amor pode ser tudo na vida?
Um sentimento que o coração desperte,
Um momento de propensa despedida...

lundi 4 avril 2011

Semper Eadem - Baudelaire (Trad. Amanda Gomes)

Sempre a mesma

"Donde viestes, dizei vós, essa tristeza estranha,
Total como o mar sobre a rocha negra e nu?"
-- Quando nosso coração fez uma vez sua colheita,
Viver é um mal. Esse é um segredo que todos conhecem,

Uma dor muito simples e nada misteriosa,
E, como vossa alegria, brilha para todos.
Portanto parei de procurar, ó bela curiosa!
E, mesmo que vossa voz seja doce, silenciei!

Silenciei, ignorante! alma sempre radiante!
Boca de riso infantil! Ainda mais que a Vida, 
A Morte frequentemente nos envolve por laços sutis.

Deixai, deixai meu coração inebriar-se com uma mentira,
Mergulhar dentro de vossos bons olhos como dentro de um sonho bom,
E dormir longo tempo à sombra de vossos cílios!


samedi 26 février 2011

Memórias de uma guria viajante III: Vale

A porta se fechou. Não consegui dar as costas e ir embora. Tinha ensaiado por tanto tempo aquele movimento simples. Senti vontade de girar a maçaneta e sair correndo pela sala. De repente, sentia-me como uma criancinha... Não abri a porta, mas a toquei. Com a mão espalmada, senti o calor que emanava daquela casa... Sentadas no chão do quarto, brincávamos de buraco, jogo preferido de minha mãe. Uma lembrança terna. Uma lágrima discreta. Então, é assim.

Eu precisava ir embora. Há quanto tempo o carro está me esperando? Não havia indício de impaciência em sua expressão. Ele sorria, mas seus olhos refletiam minha tristeza. Eu não estava pronta para ir. Talvez nunca estejamos prontos para seguir em frente. Abri a porta do carro e entrei. Em nenhum momento durante todo o percurso fui capaz de olhá-lo nos olhos. Ele respeitou meu silêncio. Agora, eu chorava compulsivamente, com todo o desespero que a rejeição causa, com toda a dor que o fim provoca. Tentei sufocar os soluços. Já não podia mais respirar. De vez em quando, ele segurava minha mão. Apesar de não saber como é, ele sofria. Todos sofríamos. Cada um com sua cota. Cada um em seu canto.  Quanto tempo leva para cicatrizar o corte de um cordão umbilical? Não sei. Mas, o laço que nos une, esse permanece. Então é assim... Sem despedidas nem voltas e fim.

vendredi 25 février 2011

Memórias de uma guria viajante II: Enigma

Noutros tempos, eu teria chorado. Teria fechado os olhos e me concentrado em minha força interior. A proximidade daquele homem, o cheiro de suor e a sujeira embaixo de suas unhas atingiam meu espírito como um soco no estômago. Nem sempre foi assim...

Não sei bem se era dia ou se era noite, mas me lembro daquele olhar desejoso. Não sei bem se era medo ou se era nojo, mas me lembro do gosto amargo daquela boca. Não sei bem se era perversidade ou se era doença, mas me lembro do suor frio daquelas mãos umedecendo o meu corpo. Lembro do meu reflexo molestado no espelho, da ingenuidade se diluindo nas lágrimas empoçadas em mãos que teimavam em tapar-me a vista. Não sei bem se eu era menina ou se eu era mulher. Nunca esquecerei as palavras proferidas com ardor por aquele velho homem de expressões suaves. Nem sempre foi assim...

Eu não olhava para nenhum lugar específico. Em silêncio, rezava para que o caminho se encurtasse, Como se isso fosse possível!. Lá fora, árvores e automóveis dividiam as ruas. Pessoas apressadas passavam por aqui, por aí. O ônibus lotado finalmente chegou ao meu destino. Desci. Em passos curtos, continuarei o percurso até em casa. Não sei bem se é perto ou se é longe, mas seguirei até descobrir. 

jeudi 24 février 2011

Memórias de uma guria viajante I

O calor nordestino não me irritava mais. A cidade estava particularmente iluminada naquela manhã. O ônibus passava pela praia da Jatiúca. Contemplar a luz do sol refletida na água sempre me inspirava. Sentir o cheiro do mar sempre me trazia lembranças. Ainda estava a caminho do trabalho, um longo caminho. Pressentia que o dia discorreria bem.
Numa festa, uma mulher encontra um homem, na verdade, reencontra um grande amor. Posso afirmar com propriedade que o "re", nesse caso, funciona como morfema de intensidade: dos batimentos cardíacos, do frio no estômago, do brilho nos olhos. A festa acontecia na Cidade Maravilhosa. Apesar do amor, temperamentos difíceis os separavam. Mas, uma rosa vermelha seca guardada com muito cuidado por ela, fez o tempo e os temperamentos serem deixados de lado, ao menos por hora. Consigo vislumbrar o desespero de suas mãos. Ela nunca havia sido tocada, em 1985, isso ainda significava muito. Um ano mais tarde, o casal se uniria. Ela pensou que fosse para sempre.
Em 1987, as pílulas contraceptivas deixaram de ser tomadas. Talvez um menino correndo pela casa preenchesse o vazio que ela sentia. Em maio do ano seguinte, nasci. Pais cariocas de sangue e de alma. Desde o nascimento fui respingada pelas águas das Cataratas do Iguaçu, abençoada pelo Cristo Redentor e levada e deixada pelo território brasileiro, como cinzas. Fecundada no Rio, nascida no Paraná e enterrada em Alagoas. Uma guria paranaense de alma carioca e de coração nordestino.
Minha mãe me disse que eu fui planejada. Meu pai só soube dos planos dela quando ela contou-o que estava grávida. O menino desejado nunca chegou. Mais duas meninas completaram nossa família. Contudo, o vazio que minha mãe sentia nunca foi preenchido. Na chegada do novo milênio, o para sempre chegou ao fim.
O ônibus estava praticamente vazio. As ruas ganhavam mais movimento a cada minuto. Essa era eu, essa era minha vida. Eu me sentia feliz onde estava agora.

mercredi 19 janvier 2011

Passatempo

Meus olhos pesavam. Pisquei uma, duas, três vezes. Tudo ainda estava embaçado. Olhei ao redor. A visão foi ficando mais nítida. A claridade era insuportável. Havia esquecido de fechar a cortina. Os raios solares espalhavam-se solenemente pelo quarto. Tentei me levantar. Minha cabeça doía demais. Minha boca desfrutava de um sabor amargo. Sentia-me envenenado. Voltei a fechar os olhos. Alguma coisa se mexeu na cama. Ah, não! Minhas pálpebras recusavam-se a me obedecer. Quando o fizeram, consegui distinguir algumas roupas femininas espalhadas pelo chão. Virei para o lado. Ela era linda, mesmo depois de ter amanhecido. Exalava um cheiro bom. Era dona de um rosto suave e de contornos que se destacavam no contraste com uma cintura fina. Não lembrava como a conheci. Nem como chegamos até meu apartamento. Nem qual era o seu nome. Por que eu sempre acordo primeiro que elas? Talvez para ficar contemplando-lhes a beleza natural e tentando adivinhar-lhes o nome. Quem será você? Na verdade, pouco importa. Deve chamar-se Amanda, assim como todas as outras. Acho melhor voltar a dormir. Quem sabe, quando eu me acordar novamente eu possa aproveitar-me de minha privacidade. Aconcheguei-me na cama. Ao lado da cabeceira, um criado-mudo vazio. Ainda sinto a falta dela. Nenhuma ausência me causou tanta dor. Posso sentir, agora, a plenitude da solidão. Às vezes esqueço que ela não está mais aqui. Desejo acordar e poder abraçá-la. Sonho com ela sorrindo serenamente, murmurando o meu nome. Sonho...
Uma música. De onde vem essa música? O celular tocava insistentemente. Alô. Alô! Quem fala? Não, não tem ninguém aqui com esse nome. Tudo bem. Tchau. A cama estaria vazia, se meu corpo inerte não estivesse ali . Eu posso sentir o tempo passando com seu arrastar de horas, com seu cumprir de dias. O relógio marca a início de mais uma noite. Como um vampiro, necessito de sangue fresco. Cabelos pretos, olhos claros, personalidade impactante, sensual e feminina, sem beirar o vulgar: uma vulgaridade profissional. Ar de Lolita para acreditar-me apaixonado e terminar traído, seja por mim mesmo, seja por minha paixão. Na aurora não a encontro. Parece maldição. Durmo com ela todas as noites e pela manhã todas elas se vão. Nenhuma ausência me causou tanta dor. Pedi que ela fosse embora. A liberdade me aprisionou. Voltei no tempo um dia desses. Voltei para o hoje. Voltei para o amanhã. Minha teimosa boca ainda grita por ela no silêncio. Ainda sonho com ela sorrindo serenamente, murmurando o meu nome. Sonho... Outro dia amanhece, mais um dia que acabou.

mercredi 5 janvier 2011

Se me ardo

Era uma noite de céu estrelado. O verão num tinha chegado, mas o calor já assolava os dias de primavera. As rachaduras do chão aparentavam mais e mais os abismos que, com profundidade, dividiam as terras. Um pouco assim me sinto agora. Consumida pelo fogo que me fere. Enfraquecida pela fome que me devora. Atormentada pelo espinho que me envenena.

Era uma noite de céu estrelado. E há muito a chuva não aliviava a sensação de desespero em minha cara. O vento que espalhava o piso de barro batido de casa não trazia nenhum sossego. Nenhum prenúncio de precipitação. Um pouco assim vou me sentir depois. Envenenada pelo espinho que me atormenta. Devorada pela fome que me enfraquece. Ferida pelo fogo que me consome.

Mais uma noite de céu estrelado... Rangendo rede é que a gente descansa, fumando palha é que a gente obedece, sertanejeando é que a gente se reconhece. E a chuva no sertão?, acende mais um cigarro e se sente comigo na rede que mais dia menos dia ela sacia quem tem sede.