L'ennemi

Voilà que j'ai touché l'automne des idées
Baudelaire

mercredi 1 septembre 2010

"Sobre a dor que nos une" - Só mais um conto...


Silêncio... Eu estava tão alegre naquele dia. Sentia uma leveza incomum e, talvez por isso, indescritível. Sentia mesmo que podia flutuar. Mas não o fiz. A sensação de conforto perpassava todo o meu corpo. Eu estava tão integrada ao lugar que não sentia meus membros. Só queria permanecer ali... Os olhos fechados. As pálpebras pesavam tanto e o sono entorpecia todo o meu ser.
Sussurros... Eu tentava me lembrar que lugar era aquele. Lugar desconhecido e tão aconchegante. Tinha ido ao escritório para pegar uns relatórios que precisavam ser analisados. Era sábado. Todos deviam estar com suas famílias, talvez numa casa de praia, afinal, o dia estava tão bonito; ou, quem sabe, numa casa nas montanhas: chocolate quente para os filhos, café para os concentrados, chá para os relaxados. Bem, eu só precisava pegar os relatórios e voltar para casa. Ainda era manhã e Mateus devia estar dormindo... Podíamos viajar. Quase nunca ficávamos juntos. Coloquei os relatórios na pasta, segui para o estacionamento. Só havia um carro: o meu. Entrei, abri as janelas para sentir o vento, liguei o CD player e, ao som de Chopin, dirigi tranquilamente pela cidade. Estava perto de casa quando parei no sinal vermelho. Verde: segui.
Dor... Minha cabeça pesava, minha boca amargava. Sentia uma dor aguda. Os espasmos quebraram todo o meu raciocínio e me deslocaram de mim mesma. Quando cheguei a casa, Mateus tomava o café da manhã que Maria havia preparado para ele. Foi incrivelmente saboroso vê-lo feliz com a proposta da viagem. Só precisamos de duas horas para organizar tudo. No banco de trás do carro, ele planejava o final de semana elencando todas as suas vontades. Mateus parecia com o pai: olhos cor de tabaco intensamente vivos, procurava em tudo a essência da vida, era simples e forte e lindo. Era tão difícil vê-lo e não lembrar, vê-lo e não sentir essa aguda dor no peito. Mais um sinal. Verde: segui.
– Acorde! Vamos, garota, acorde! – uma voz masculina gritava, insistia. Eu sentia tanta dor. Todo o meu corpo reagia. Abri os olhos. Estava tão claro. O sol incomodava demais. Não dava para entender o que toda aquela gente falava. Olhei ao redor, tentando digerir a cena. Carros de polícia, ambulâncias... Uma multidão nos cercava. E deitado no chão, frágil como eu nunca havia visto, pequenino e imóvel, estava o meu filho sobre uma poça de sangue.
– Tia, falta muito para a gente chegar? – havia ansiedade em sua voz.
– Não, meu amor, só falta um pouquinho. Por quê? Você quer alguma coisa?
Eu o olhava pelo espelho do retrovisor. Dava para perceber que ele queria dizer algo. Suas feições haviam mudado, entristeceram-se. Então compreendi o que ele tentava dizer...
– Você quer ver o papai e a mamãe antes de irmos à praia?
– Quero sim. Você se importa?
– Claro que não. Também sinto a falta deles.
– E a do Miguel também, né?
– É... Sinto muito a falta do Miguel.
Não era só o amor que me unia a Mateus. A dor da perda era um elo de identificação muda e natural entre nós. Mateus era filho da minha única irmã com um homem incrível. Ela havia morrido no parto. Sempre acreditei que o pai de Mateus também morreu naquele fatídico dia. Depois da morte da esposa, Pedro começou a definhar. O alcoolismo acabou com a sua vida... E com a de meu filho. Num mesmo acidente perdemos quase toda nossa família. Hoje, Mateus e eu tentamos superar um dia após o outro. E quando achamos que não temos mais nada, ainda temos o silêncio para partilhar. Sempre teremos um ao outro.
– Pronto para ir à praia?
– É, estou.
Todos foram enterrados no mesmo cemitério. Túmulos lado a lado para experimentarmos todo o conflito a ser sentido para o resto de nossas vidas.
– Tia, podemos tomar sorvete antes de continuarmos a viagem?
– Hum... Boa ideia! Está quente mesmo, um sorvete vai ser bom.
Verde: seguimos, mesmo com todos os sinais.

2 commentaires:

  1. Interessante. Perturbador também.

    (Um comentário desprovido de qualquer formalidade crítica) Fico mal com histórias em que todo mundo morre.

    Não sei se é porque eu realmente tenho dificuldade de me concentrar ao ler o que você escreve (é provável que seja isso mesmo), mas achei que alguns eventos careceram de "explicação". Talvez eu esteja desacostumado a narrativas que não tratam o tempo de maneira linear.

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  2. O seu comentário foi bem pertinente. Acho que todas as minhas narrativas são realmente fragmentadas, ou desarticuladas, quem sabe, ziguezagueantes. Posso culpar Rimbaud? Contudo, acho que não carecem de explicação... São sequências abertas, polissêmicas. Tente torná-las lineares ao seu gosto, experimente. Beijos.

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