L'ennemi

Voilà que j'ai touché l'automne des idées
Baudelaire

samedi 26 février 2011

Memórias de uma guria viajante III: Vale

A porta se fechou. Não consegui dar as costas e ir embora. Tinha ensaiado por tanto tempo aquele movimento simples. Senti vontade de girar a maçaneta e sair correndo pela sala. De repente, sentia-me como uma criancinha... Não abri a porta, mas a toquei. Com a mão espalmada, senti o calor que emanava daquela casa... Sentadas no chão do quarto, brincávamos de buraco, jogo preferido de minha mãe. Uma lembrança terna. Uma lágrima discreta. Então, é assim.

Eu precisava ir embora. Há quanto tempo o carro está me esperando? Não havia indício de impaciência em sua expressão. Ele sorria, mas seus olhos refletiam minha tristeza. Eu não estava pronta para ir. Talvez nunca estejamos prontos para seguir em frente. Abri a porta do carro e entrei. Em nenhum momento durante todo o percurso fui capaz de olhá-lo nos olhos. Ele respeitou meu silêncio. Agora, eu chorava compulsivamente, com todo o desespero que a rejeição causa, com toda a dor que o fim provoca. Tentei sufocar os soluços. Já não podia mais respirar. De vez em quando, ele segurava minha mão. Apesar de não saber como é, ele sofria. Todos sofríamos. Cada um com sua cota. Cada um em seu canto.  Quanto tempo leva para cicatrizar o corte de um cordão umbilical? Não sei. Mas, o laço que nos une, esse permanece. Então é assim... Sem despedidas nem voltas e fim.

vendredi 25 février 2011

Memórias de uma guria viajante II: Enigma

Noutros tempos, eu teria chorado. Teria fechado os olhos e me concentrado em minha força interior. A proximidade daquele homem, o cheiro de suor e a sujeira embaixo de suas unhas atingiam meu espírito como um soco no estômago. Nem sempre foi assim...

Não sei bem se era dia ou se era noite, mas me lembro daquele olhar desejoso. Não sei bem se era medo ou se era nojo, mas me lembro do gosto amargo daquela boca. Não sei bem se era perversidade ou se era doença, mas me lembro do suor frio daquelas mãos umedecendo o meu corpo. Lembro do meu reflexo molestado no espelho, da ingenuidade se diluindo nas lágrimas empoçadas em mãos que teimavam em tapar-me a vista. Não sei bem se eu era menina ou se eu era mulher. Nunca esquecerei as palavras proferidas com ardor por aquele velho homem de expressões suaves. Nem sempre foi assim...

Eu não olhava para nenhum lugar específico. Em silêncio, rezava para que o caminho se encurtasse, Como se isso fosse possível!. Lá fora, árvores e automóveis dividiam as ruas. Pessoas apressadas passavam por aqui, por aí. O ônibus lotado finalmente chegou ao meu destino. Desci. Em passos curtos, continuarei o percurso até em casa. Não sei bem se é perto ou se é longe, mas seguirei até descobrir. 

jeudi 24 février 2011

Memórias de uma guria viajante I

O calor nordestino não me irritava mais. A cidade estava particularmente iluminada naquela manhã. O ônibus passava pela praia da Jatiúca. Contemplar a luz do sol refletida na água sempre me inspirava. Sentir o cheiro do mar sempre me trazia lembranças. Ainda estava a caminho do trabalho, um longo caminho. Pressentia que o dia discorreria bem.
Numa festa, uma mulher encontra um homem, na verdade, reencontra um grande amor. Posso afirmar com propriedade que o "re", nesse caso, funciona como morfema de intensidade: dos batimentos cardíacos, do frio no estômago, do brilho nos olhos. A festa acontecia na Cidade Maravilhosa. Apesar do amor, temperamentos difíceis os separavam. Mas, uma rosa vermelha seca guardada com muito cuidado por ela, fez o tempo e os temperamentos serem deixados de lado, ao menos por hora. Consigo vislumbrar o desespero de suas mãos. Ela nunca havia sido tocada, em 1985, isso ainda significava muito. Um ano mais tarde, o casal se uniria. Ela pensou que fosse para sempre.
Em 1987, as pílulas contraceptivas deixaram de ser tomadas. Talvez um menino correndo pela casa preenchesse o vazio que ela sentia. Em maio do ano seguinte, nasci. Pais cariocas de sangue e de alma. Desde o nascimento fui respingada pelas águas das Cataratas do Iguaçu, abençoada pelo Cristo Redentor e levada e deixada pelo território brasileiro, como cinzas. Fecundada no Rio, nascida no Paraná e enterrada em Alagoas. Uma guria paranaense de alma carioca e de coração nordestino.
Minha mãe me disse que eu fui planejada. Meu pai só soube dos planos dela quando ela contou-o que estava grávida. O menino desejado nunca chegou. Mais duas meninas completaram nossa família. Contudo, o vazio que minha mãe sentia nunca foi preenchido. Na chegada do novo milênio, o para sempre chegou ao fim.
O ônibus estava praticamente vazio. As ruas ganhavam mais movimento a cada minuto. Essa era eu, essa era minha vida. Eu me sentia feliz onde estava agora.