L'ennemi

Voilà que j'ai touché l'automne des idées
Baudelaire

lundi 26 septembre 2011

Memórias de uma guria viajante VII: Pesadelos

          O lugar era arejado e confortável. As janelas eram grandes, tomavam toda a parede leste da sala, cobertas por persianas que, agora, estavam abertas. Podia avistar os prédios altos que circundavam aquele próprio. Mais além, além dos prédios, o céu estava límpido. Não aparentava ter chovido como tinha chovido na noite anterior.
          Enquanto meus olhos investigavam detalhes da sala, ela me observava pacientemente. Quadros, mesa, poltrona, divã, tapete... De forma geral, o ambiente possuía uma neutralidade estranha. Um ou outro objeto de cor forte e sóbria dava vida ao lugar. Sentei.
- Então, o que te trouxe aqui?
- Bem... Não consigo dormir.
- Há quanto tempo não dorme?
- Não sei. Acho que perdi a conta. Na verdade, não me lembro de muita coisa hoje.
- Você sempre teve crises de insônia?
- Na infância...  Mas os motivos eram outros.
- Motivos, você disse. Você os conhece?
- Mais ou menos. Não sei por que não dormia quando era criança.
- E, agora, você sabe?
- Sei.
          Silêncio. Minhas mãos tremiam, meus olhos estavam cheios de lágrimas. Ela, gentilmente, arrastou uma caixa de lenços de papel pela mesa de centro de madeira que separava sua cadeira da minha, oferecendo-me, de certa forma, consolo.
- Tenho medo, muito medo.
- De quê?
- De pesadelos...
- Você costuma ter muitos pesadelos?
- Às vezes. Eles vêm e vão.
- São recorrentes?
- Alguns...
- Você quer me contar o que acontece nos seus pesadelos?
- Não sei. As palavras têm poder, sabe. Se eu contar, se eu lembrar...
          Silêncio. Ela se ajeitou na poltrona, aproximando-se mais de mim ao inclinar-se para frente. Parecia curiosa.
- É bobagem, eu sei. São só sonhos, eu sei. Compreendo perfeitamente que não são reais. Mas, quando tenho pesadelos, o meu medo ultrapassa a dimensão da racionalidade, sabe? Apesar de entender que os sonhos não cabem na realidade, o medo que sinto é real.
- Desde quando você tem esses pesadelos?
- Desde os onze anos. Os iniciais eram mais recorrentes... Envolviam questões religiosas, eu diria que até questões espirituais.
- E os de hoje?
- Ainda tenho esses pesadelos que tinha na infância. Mas, agora, eles são mais violentos, mais absurdos...
- Absurdos?!
- São mais bobos, menos reais, mas muito violentos. E tudo me dá medo. Meu medo me leva a sonhar. 
- Qual o seu maior medo?
- Difícil responder com certeza... 
          Tique-taque. Tique-taque. Tique-taque. Minhas mãos apertavam-se com força, inquietas. Ela as olhava. Me ofereceu água. Aceitei. Com o copo na mão, o nervosismo foi se dissipando. Continuei:
- Acho que de ficar só.
- O que tem de errado em ficar sozinha?
- Não quero passar o resto da vida sozinha. Às vezes, tenho visões... Me vejo sentada, escrevendo um livro. De vez em quando, faço um carinho em meu gato, meu único companheiro.
- Você imagina isso ou sonha?
- Acho que sonho de olhos abertos.
- E o que você pretende vindo aqui? Pretende parar de ter pesadelos?
- Quero parar de ter medo! Quero entender o que se passa comigo. Por que tenho medo agora? Por que dormir se tornou algo tão torturante?
- Você não consegue ou não quer dormir?
- Talvez não consiga porque não quero. Já pensei nisso. Não quero por que tenho medo?
- Medo de quê?
- De ser maculada com violência, de perder o espaço de racionalidade que delimitei, de ter mais medo quando acordar.
          Tique-taque. Tique-taque. Tique-taque. Ela parecia inquieta. Olhou três vezes para o relógio. Parecia buscar cuidadosamente as palavras.
- Vá para casa. Durma. Tenha um pesadelo horrível. Não acorde, deixe que ele termine. Enfrente seu medo. Lembre de tudo. Anote o que lembrar... Traga suas anotações na próxima semana.
- Posso dormir com alguém?
- Durma sozinha. E volte para me contar como foi sua experiência.
- Tudo bem. Até semana que vem.
          Ela também se despediu, levantando-se e abrindo a porta para mim. Assim que cheguei em casa, iniciei meu ritual de relaxamento para dormir. Banho quente, chocolate quente, um bom livro... Finalmente o sono chegou. Dormi como uma pedra. O pesadelo nunca mais voltou. Sonhei com o céu, um anjo me puxou. Não pude voltar para terapia... O sonho nunca mais acabou.

Aucun commentaire:

Enregistrer un commentaire